domingo, 28 de agosto de 2011

Uma cidade pequena demais

Cissa de Oliveira




Ele se deitou na cama meio atravessado, e o motivo, outro não foi senão o de permanecer sob o sol nada acanhado que invadia o quarto. Pela janela o olhar alçou vôo, antes de pairar sobre a copa alta de uma árvore que o vento sacudia lá no jardim. A leve contração entre as sobrancelhas era indício de um apelo doendo nele como um punhal metafísico do qual não pudesse, ou não quisesse se livrar. Fez menção de se virar para o outro lado mas apenas apalpou o travesseiro e afundou os pensamentos.

Nas maçãs de alguns rostos fica patente o amadurecimento; não no rosto daquele homem. Ali, o tempo se retivera, como se, recobrindo toda uma casta de uvas, planejasse alguma coisa a mais; um vinho especial?

Levantou-se repentinamente. Sentindo ímpetos de mandar derrubar qualquer coisa, a casa até. Acabou na cozinha, besuntando com azeite uma porção de torradas que depois saboreou com apetite, enquanto pensava: A vida é cíclica, menos mal, ainda que um dia, o espanto final. Calçou os tênis. Saiu.

Remoendo os pensamentos, descobriu o que o apoquentava: ele deveria ser breve, e planejou, ali mesmo, entre os quarteirões que percorrera: a princípio encurtaria frases. Se fosse o caso, viraria escritor. Exerceria a síntese através da escrita. Talvez escrevesse um livro com cem palavras. Pão com queijo. Queijo com pão. Pão, queijo. Pão. Queijo. Depois, calejado pela abreviação, a síntese abarcaria a oratória, quiçá, até o pensamento, raiz do bem e do mal. Seria direto. Calmo e direto. Inatingível. Difícil de ser sondado.

Voltou pra casa pensando na consulta médica do dia anterior. O médico tinha parado de remexer nos papéis, abaixado a cabeça e deixado o olhar escapulir por sobre a parte superior dos óculos.
- Excesso de potássio... O senhor come bananas?
- Sim.
- Quantas?
As que me dá vontade... retraiu os lábios para não dizer o que pensou, como se acaso um homem não pudesse nem mais comer bananas sem ser sondado!
- Uma... duas, por dia.
- Estão proibidas, assim como as mulheres bonitas... Teria ouvido aquilo? Com certeza, porque o médico rira zombeteiro, para depois finalizar: - Viu como poderia ser pior? Pense, seu... como é mesmo seu nome? – pense! A vida é o que de melhor possui.

As mulheres belas... Na juventude fora adepto do pensamento de que nesse caso a derrota é sempre momentânea. Depois, levou “tanto pé” da vida – inclusive de algumas mulheres, agora admitia – que decidiu colocar as coisas onde estas devem estar. O diacho é que o tempo passa rápido, e agora, justamente, dera de pensar nela, a Izildinha, e nos seus cabelos pretos. Pronto, só tinha um jeito, da próxima vez que a visse desperguntaria o perguntado, falaria tudo ao contrário, tudo com duas palavras, no máximo. A repentina decisão foi levada a ferro e a fogo, porque em casa foi direto ao escritório, treinar no computador.

O nada. Ótima frase para começar. Uma frase com duas palavras, e ainda falando sobre o nada. Sensacional! Ainda ficou um tempo por ali, remoendo a frase, e de remoer o nada, nada mais escreveu. Síntese total. Por que? Por que? Pior, quanto mais pensava mais lhe doía, até dar por si, exausto. A cabeça por estourar. Decidiu esquecer tudo até a quarta-feira, que afinal seria no dia seguinte.

Preparado, empoleirou-se em frente ao computador. Todo revestido de si, decidiu não pensar; escreveria frases curtas, pois isso deveria trazer a almejada síntese.

Não, não era o nada.
Só a quietude.
O tempo que se desfia.
Ânsia. Coração de estrelas.
Lençol da poesia.

Não, não era o nada.
Só repetição silenciosa.
Mesmas mós
numa tarde morna.

Não, não era o nada.
Só um segredo
com a força de revoada.
Mil pássaros.
Mais nada.

Não, não era o nada.
E nunca
será.


O homem ainda releu o escrito antes de rasgá-lo em mais de mil pedacinhos. Aquilo era poesia, oh, sheet!, bandeira aberta, estendida, hasteada. Precisava abreviar mais. Na outra quarta-feira saiu da cidade sem dizer nada a ninguém. Aquela era pequena demais pra ele mais a Izildinha e seus cabelos pretos.

Cissa de Oliveira

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