domingo, 4 de março de 2012

O fim do mundo

Cissa de Oliveira



Duas certezas Kelvin da Silva carregava consigo: uma a de ter sempre feito tudo conforme mandava a sua consciência, e a outra, a de que ainda era mês de agosto. Os jornais, até mesmo os menos sensacionalistas é que não davam sossego. Dos ralés aos mais gabaritados: O que mudava era tão só o tom da reportagem. “Agora é certo: O mundo vai se acabar no dia 21 de dezembro de 2012”; e prosseguia com recomendações diversas, que iam de como esticar o tempo, a transar com pessoas improváveis. Outras reportagens mostravam elegância, e até se aventuravam pela área filosófica: “O mundo vai mesmo acabar?” Pense bem antes de arriscar essa resposta, afinal milhares de ciclos se encerram a cada dia. E se encerram para que outros se iniciem.

Que papagaiada! Pra vender jornal só falta anunciar que cobra pensa. Não leria mais, trocaria de canal ao perceber que o tema fosse esse, e quando a conversa tratasse do fim do mundo concordaria com qualquer coisa, até porque a decisão dele já estava tomada: viveria intensamente tudo o que tem direito até o dia 21 de dezembro de 2012. Pra começar, viajaria pra conhecer o mundo antes que ele se acabasse.

Kelvin fez uma rápida contagem dos dias que restavam até a fatídica data. À noite, anunciou à mulher que eles viajariam o quanto antes, sem data para retorno. Por onde ela gostaria de começar? Dona Nilza estranhou, talvez o marido tivesse bebido umas a mais; desconversou. Ele insistiu. Pra isso tinha largado o emprego, vendido um imóvel, retirado economias de toda uma vida profissional. Só não apanhou ali mesmo porque a mulher teve certeza de que ele era um caso perdido. Pensou em telefonar ao médico; talvez a um psiquiatra. Tomaria essa providênca na manhã seguinte, sem falta, e que ele tratasse de ir dormir noutro quarto!

Naquela noite ele aproveitou para não dormir. Dormir era deixar de viver, tinha compreendido. Saiu em direção ao aeroporto bem antes do sol. Só não contava com o congestionamento encontrado; se ao menos tivesse assistido as últimas noticias... Gente querendo partir, muita gente; outros, também muitos, chegando. Se metade da população do planeta tivesse a mesma idéia, o fim do mundo capaz que ocorresse antes do previsto. Não, não havia mais vôos disponíveis e por isso ele se alojou por ali, nas poltronas dos saguões, entre a multidão descontrolada.

Dona Nilza deu pela falta do marido. Voltou ao quarto, iria dormir mais uma hora e meia pelo menos. Virou o travesseiro. Ah, como era bom o frescor do outro lado do travesseiro! No café da manhã foi que comunicou aos filhos, todos já adultos, que o pai tinha viajado. Pra onde? Tinha viajado pra se desestressar, talvez voltasse em duas semanas. Nos dias seguintes inventava que ele tinha telefonado, que estava na Itália; dali tinha voado para a África, depois voltado à Europa, enfim, resolveu entrar em férias prolongadas. Estranhavam pois era notório os congestionados nas ruas, nos aeroportos, mas com o corre-corre próprio da vida de cada um, ninguém mais falou nisso, ao menos não com preocupação.

Sem o marido, e sem a perspectiva de quando ele voltaria, dona Nilza fez uma descoberta: na vida existiam coisas incríveis como se esquecer das preocupações por várias horas numa espreguiçadeira; não pensar em nada por milésimos de segundos; de repente ouvir a música predileta no rádio; tirar o sapato apertado; achar o dinheiro que ela mesma tinha esquecido nos bolsos; receber um telefonema de alguém de quem ela gostava muito; chegar em casa depois de um dia muito quente lá fora; ter gestos de solaridariedade e se sentir muito bem com isso; beber água fresquinha quando estava com muita sede; dançar com inexplicável felicidade; observar as andorinhas bebericando a água da piscina; acordar achando que era segunda-feira, quando na verdade era domingo; ficar tocada pela beleza de uma obra de arte; descobrir que voltou a entrar naquele vestido maravilhoso; fazer uma receita nova e ter um ótimo resultado. A lista era mesmo infinda e a vida, linda. Não entendia como não tivera espaço para essa sensibilidade antes.

Vinte e três horas e quarenta e nove minutos do dia 21 de dezembro. Kelvin tentava silenciar os dentes, que na hora do medo eles tinham vontade própria. Coisinhas teimosas! Ia morrer passivamente? Não. Por isso é que estava em frente ao Palácio de Westminster. Olhava para o Big Ben como se encarasse a morte on time. Achou que a torre do relógio parecia muito, muito inclinada. As imagens começaram a dançar, as luzes se misturavam com o chão, o ponteiro ia e voltava – adiamento do fim do mundo? - a paisagem se retorcia. O coração dele disparou, sentiu as pernas bambas, ia caindo, pensou ter ouvido estrondos. Deviam ser as explosões do fim do mundo.

Um mal repentino explodiu o coração de Kelvin, enquanto os estrondos, na verdade badaladas do sino, anunciavam o início do dia 22 de dezembro de 2012. O mundo não tinha acabado, quer dizer, não para o resto da humanidade.

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